sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O PATINHO QUE NÃO SABIA VOAR

O PATINHO QUE NÃO SABIA VOAR
RUBENS ALVES

Taco era um patinho. Era amarelo e fofo como todos os patinhos, quando acabam de sair dos ovos. Mamãe pata olhava feliz para Taco e seus nove irmãozinhos. 
         Papai pato conversava com os amigos e dizia, orgulhosos que seus filhos haveriam de ser lindos patos selvagens, capazes de voar longe, muito longe livres...
         Brincavam o dia inteiro, fazendo uma enorme gritaria, com toda a criançada da vizinhança: os sabiás, os beija-flores, os coelhinhos.
         E chegaram mesmo a ficar amigos de uns peixinhos, com quem gostavam de apostar corrida no ribeirão.
         Tudo era só brincadeira até que o pai chamou todos os patinhos e, com ar muito sério disse:
         -Chegou a hora de começar o treinamento para a liberdade. Taco perguntou logo se liberdade era coisa de comer, se era doce ou azeda. Nenhum patinho tinha ouvido esta palavra antes.
          Papai pato deu uma risada e disse:
          - Não, não é nada disto.
          Liberdade é poder fazer aquilo que agente quer muito, muito mesmo.   O que as nuvens mais querem é virar chuva. Porque a chuva faz as plantas brotarem.              
          E as nuvens ficam felizes quando viram chuva.
         O que os sabiás mais querem é começar a cantar, antes do sol nascer, aquele canto triste e comprido, que faz com que todos os bichos fiquem felizes porque os sábias existem. O mundo seria tão triste sem eles...
         O que os beija-flores mais querem é ser capazes de bater as asas tão rápido, que ninguém vê, e ficar voando, parados, na frente das flores, sugando o seu melzinho.
         As flores sorriem para os beija-flores e os beija-flores sorriem para elas. E todos se sentem felizes.
         O que as rosas mais desejam é tomar um banho de sol e espalhar o seu perfume...
         E há um peixe que tem um desejo enorme de voltar às nascentes do rio onde nasceu.                        
        E para voltar a este lugar encantado ele é capaz mesmo de soltar sobre cachoeiras...
        -E nós, que é que nós mais queremos?- perguntou um dos irmãozinhos.
         -Nós somos patos selvagens. Nosso maior desejo mais fundo, a coisa que mais queremos , é voar. Voar alto. Voar muito alto.
         Voes verão, quando crescerem um pouco mais. Vocês sabem o que é saudade? Saudade é uma coisa que a gente sente quando alguém muito querido partiu e está muito longe. Saudade dói. Às vezes a gente chora de saudade. Pois bem: isto, que nós patos selvagens sentimos, se parece com saudade. Do mesmo jeito que o peixe faz tudo para voltar ao lugar onde nasceu, nós fazemos tudo para chegar às alturas. Nós nascemos para viver nas alturas.
Lá no alto é maravilhoso, continuou o pai. Ás vezes, de tarde, o sol vai se pondo, escondendo-se atrás das montanhas. As nuvens vão ficando vermelhas. Todos os bichos vão voltando para suas casas. As árvores, as matas, as montanhas, o vento, tudo está quietinho. Como se estivesse rezando. Só se ouve o flap-flap das nossas asas. E a gente sente que aquele momento é a coisa mais bonita da vida inteira...
   Taco desatou numa gargalhada.
         - Que é isto, papai? Voar nestas alturas? Aqui embaixo está tão bom. Eu não sei voar e não quero aprender a voar. Corro muito bem, brinco de pique, sei nadar, me divirto á beça com a meninada... Que coisa mais gostosa pode existir na vida?        
         Não existe nada que eu troque por uma brincadeira de esconde-esconde com os coelhinhos e os pardais...
         O papai Pato parou de sorrir.
         Seus olhos ficaram tristes.
         Ele pensou antes de falar.
         - Eu não queria falar sobre isto agora, porque é muito triste. Mas o pato que não aprende a ser livre acaba virando pato doméstico.
         - O que é isto, pato doméstico?- perguntou um dos patinhos com um bocadinho de medo.
         - A gente fica doméstico quando arranja um dono.
         - E o que é isso? – perguntou Taco.
         -Entre nós, bichos, não havia dono. Ninguém era dono de ninguém. Ninguém era animal doméstico. Foram os homens que inventaram isto.vieram os homens com laços e redes e puseram os animais dentro de cercados e os obrigaram a trabalhar para eles.
         Os cavalos, em outros tempos tão orgulhosos e livres, correndo pela campinas, viraram bestas de montaria e de carga.
         Não podem fazer o que querem porque os homens puseram freios nas suas bocas e apertam suas barrigas com esporas...
         Ah! Como eles choram de noite por haver perdido sua liberdade.
         Coisa parecida aconteceu com os cachorros, galinhas, vacas e bois, continuou o pai.                                                                                         Não são donos dos seus narizes. Têm de fazer o que os homens mandam. E quando não obedecem, apanham. Às vezes, quando não servem para mais nada, são mortos para serem comidos como churrasco ou como galinha assada. E a mesma coisa acontece com os patos que não aprendem a ser livres. Acabam virando animais domésticos. Passam a ter um dono...
         Os patinhos estremeceram. Mas o pai continuou.
         - Os homens descobriram, depois, que eles podiam domesticar uns aos outros, também.
         E passaram a fazer uns aos outros aquilo que tinham feito aos animais. Os mais forte ficaram donos dos mais fracos. Os mais fracos são obrigados a fazer a vontade dos mais fortes. E há homens e mulheres, centenas, milhares, que passam a vida inteira sem realizar o seu desejo mais profundo, aquilo que nos faz felizes. Só sabem fazer a vontade dos outros.
         Eles não aprenderam a liberdade.
         Foram domesticados.
         Taco, nesta hora, estava mais interessado em acompanhar o vôo de uma borboleta. Foi quando um bando de pardais passou, fazendo algazarra, com um convite:
         - Vamos brincar de pega?
         Taco, cansado com o “papo-furado’ do pai, saiu correndo e desapareceu. Foi atrás dos pardais. Brincar na verdade, era a única coisa que lhe interessava.
         “Meu pai se preocupa demais com a vida” , ele pensou.
         “Ainda há muito tempo. Depois eu penso nessa coisa chamada liberdade. A vida é muito boa...”.
         Os outros patinhos começaram o treinamento.
         Passavam horas a fio batendo as asas. Suas asas deveriam ser fortes para voar por muito tempo. Aprenderam a respeitar fundo porque, para voar nas alturas precisariam de muito ar. Seu pai lhe ensinou a voar sem esbarrar uns nos outros. E assim o tempo foi passando. Ficavam cansados. E tinham muita inveja do Taco, despreocupado.
         O tempo passou.
         O inverno foi chegando, aos poucos. O sol se escondia mais cedo. As folhas das árvores começaram a cair. A comida foi ficando mais difícil. Taco notou que não havia mais companheiros para a brincadeira... pareciam que todos haviam se escondido. Bandos de patos selvagens começaram a passar, voando lá nas alturas, perto das nuvens. Estavam de viagem, indo para onde era mais quente, para onde havia mais comida. Ele notou que sua família também se preparava para a viagem.
         Chegara a hora que ele pensara nunca havia de chegar. E ele começou a ter medo. Ele nunca havia treinado para ser livre. Nunca havia voado nas alturas. Apalpou os músculos de suas asas. Eram fraquinhos, murchos...mas era tarde demais.
         Chegou o dia da partida. Toda a família se reuniu e veio a ordem:
         - Bater as asas...
         Todos começaram a bater suas asas para esquentar o corpo.
         - Voar – grasnou o pai.
         Todos se elevaram.
         Menos o taco. Seu pai o viu, sozinho, no chão. Disse à mãe que continuasse.
         Haviam de se encontrar depois.
         Ele tinha de ficar para proteger o filho que não treinara para a liberdade.
         Fez uma longa cursa e voltou.
         Taco não conseguiu mesmo voar.
         O remédio era ficar, na esperança de que conseguiriam sobreviver.
         A comida faltava. O pai tinha que voar longas distâncias para buscar comida. Aí chegaram os caçadores. Ninguém os viu. Só se ouvia o trovão de suas espingardas, ao longe. Um dia seu pai saiu e não voltou mais. Aí os caçadores apareceram, com seus laços e redes, em busca dos animais que poderiam ser domesticados. Taco tentou fugir, nadando. Mas uma grande rede redonda caiu sobre ele.
         Foi levado para um sítio e bem tratado. A vida não era má. Ele tinha milho a vontade. Mas uma de suas asas foi cortada para não voar. E foi colocado atrás de uma cerca. Havia se transformado em um pato doméstico. Foi engordando, engordando... Quando o inverno ia chegando, havia o grasnar dos patos selvagens, voando lá nas alturas, brilhando sob a luz do sol.
         Foi só então que ele compreendeu o que seu pai lhe havia dito. Sentia um desejo profundo, lá no fundo, coisa doída parecida com saudade. Queria voar, voar com todos os patos selvagens.
         Por um momento esqueceu-se de tudo. Abriu suas asas, bateu-as com toda a força que era capaz. Chegou até a levantar os pés do chão. Mas era inútil. Muito gordo, músculos moles, asa cortada. Era um pato doméstico.
         O pato selvagem só vivia lá dentro do seu coração, como um grande desejo.
         Duas grossas lágrimas rolaram pela sua face.
         Mas elas não adiantavam de nada.
         Nesta hora, abriu-se a porta do cercadinho e seu dono jogou um punhado de milho.
         Mas ele não tinha fome.

3 comentários:

  1. Muito lindo mesmo Dirce,isto é uma lição de vida,não sei porque me lembrei de meu filho,que com 27 anos ainda não sabe voar,mas eu estou lá correndo com os caçadores e persistindo também num novo curso de graduação,para ele bater suas asas sozinho.

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  2. Notei que meu comentário foi publicado depois que coloquei as letras da palavra chave,no meu blog não acontece isto,lá os comentários são enviados por email,para eu moderar.Sabe como fazer para o meu ficar igual ao teu?

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  3. Que felicidade! Encontrei a Dirce por aqui tbm! Muuuito legal! Agora já tenho dois de meus amigos do blogorama juntinhos. Dirce e José Carlos. Quase não apareço por aqui, mas sempre que der agora visito. Beeeeijos lindooona

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